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sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Sobre uma brutal covardia
Para a historiografia oficial, bem ilustrada em 'Os Sertões' de Euclides da Cunha, os eventos de Canudos foram mera restauração da ordem, quebrada por um bando de lunáticos.
Os adjetivos que se seguem são todos da obra supra citada e foram compilados por Diogo Mainardi. Os "fanáticos" - para mim, fiéis - de Antônio Conselheiro eram: uns “broncos”, uns “primitivos”, uns “retardatários”, uns “retrógrados”, uns “impotentes”, uns “passivos”. Eles eram também “uma turba de neuróticos vulgares”, de “desvairados”, de “desequilibrados incuráveis”. Eles eram “uma gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, vezada à mândria e à rapina”. E por fim, eram dotados de uma “moralidade rudimentar”, com uma série de “atributos que impediam a vida num meio mais adiantado e complexo”, um retorno “ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie”.
Por partes:
Começo pela opinião pessoal de que Euclides da Cunha errou feio em Canudos, muito provavelmente em função de limitações de sua própria personalidade racista. Ele não percebeu nem de longe o significado social do acontecimento, preso que estava às suas concepções do desequilíbrio biológico e psicológico daquela gente, para ele, uma sub-raça fruto da miscigenação. Euclides acertou ao declarar que o que se deu ali não fora aplicação da lei, mas vingança.
Segundo: o Exercito estaria ali para restaurar qual ordem ? No sertão da Bahia do seculo XIX havia uma economia gravitando em volta da grande propriedade monocultora, uma sociedade caracterizada pela ignorância da maioria, de relações escravistas de trabalho, de violência contra os humildes, o mundo dos 'coronéis'. Nesse ambiente nasce uma comunidade auto-suficiente inclusive do ponto de vista religioso, de iguais, que trabalhavam a terra em beneficio de todos, e onde não havia violência. Menos trabalhadores para os coronéis, menos fiéis para a Igreja católica. Este era o cenário.
Terceiro: sobre o tal Conselheiro, também muita lacuna na historia oficial. Para mim muito mais que um lunático. Nascido em Quixeramobin, Ceará, em 1828, Antonio Mendes Maciel, sobreviveu a uma infância pobre e violenta, tornando-se bom aluno na Escola do Professor Fernando Nobre, onde destacou-se em geografia, português, francês e latim. Com o comercio do pai falido, tornou-se professor em fazendas, foi caixeiro viajante, escrivão de Juiz de Paz, e em Ipú foi advogado provisionado, um prático, sem diploma.
Estes oficios por um lado permitiram a Antonio conhecer por dentro a 'justiça dos sertões' (ou a falta dela), e por outro, permitiram-lhe o desenvolvimento da oratória e do poder de dissuasão.
Contratempos marcaram o fim de seu casamento e lançaram-lhe numa vida de andarilho, sobrevivendo da construção, conserto ou reforma de igrejas e capelas pelo sertão. Não mendigava.
Inspirado por Padre Ibiapina, um homem que fazia intensa obra social nos sertões do Ceará, Antonio passou a ser pregador de uma versão pessoal das mensagens bíblicas, auxiliando, ouvindo e aconselhando os aflitos. Em 1874, aos 46 anos de idade, ao fixar-se em Itapicurú de Cima, Bahia, já atraia para si multidões, e já era "O Conselheiro".
Coronéis que perdiam trabalhadores, padres católicos que perdiam fiéis, e autoridades constituídas que perdiam voto de cabresto, começam a ver com desconfiança aquele "grupo de fanáticos seguindo um louco", e iniciaram-se as perseguições. Antonio foi preso, enviado a Fortaleza, inocentado das imputações, retornado à Bahia justamente na pior das secas, entre 1878 e 1880, período esse em que atuou mais que nunca no amparo aos flagelados, ampliando sua fama de homem bom e justo, e atraindo mais e mais seguidores.
Em fevereiro de 1882 o arcebispo baiano D. Luis Antonio dos Santos faz correr uma circular entre sua base ou freguesia, alertando contra a presença de um mistico de 'moral excessivamente rigorosa' que vinha atraindo para si atenção do povo, e determinando que os párocos proibissem seu rebanho de se reunir para ouvir a doutrinação do Conselheiro, que por sinal era tão sincero em seu catolicismo, e tão rigoroso em sua vida pessoal, que a Igreja católica não teve como excomungá-lo ou trata-lo como herege. O Conselheiro nunca realizou milagres ou curas, e nunca fez profecias. O objetivo de contê-lo devia-se à ameaça que ele representava à hierarquia do monopólio da fé.
As proibições da Igreja não o afastaram do povo, e assim, partiu-se para ação politica para detê-lo. Em 1883, à pedido da Diocese, o presidente da província da Bahia, Bandeira de Melo, faz uma tentativa de enviar o Conselheiro para um hospício no Rio de Janeiro, sem sucesso.
Com a Lei Áurea em 1888, passa a ocorrer a natural incorporação de ex-escravos ao Movimento.
Proclamação da Republica em 1889, Antonio vivera 61 anos sob as Leis do Império (1822-1889). Sua visão de mundo não concebia a separação de religião e politica, e ele via na Republica uma exterminadora da religião.
A própria Constituição Republicana de 1891 lhe garantia o livre direito de ter e defender uma opinião politica, mas o jogo foi mal jogado, e sob o pretexto de domar uma desobediência civil, alinharam-se agora contra Antonio e o Movimento, a Igreja e o Estado.
Nesse ambiente, qualquer pretexto serviria para ações de 'restauração da ordem', e á partir de 1893 ocorreram os primeiros conflitos armados, forçando Antonio e seu grupo no rumo norte, das caatingas e duríssimas serras áridas.
Após dias de caminhada chegaram às margens do Rio Vaza Barris, onde havia uma fazenda de gado abandonada e uma igreja em ruínas, decidiram ficar. Era 1893, e nascia naquele local o sonho do contraponto ao grande engenho de açúcar do litoral e sua sociedade vertical, uma comunidade sem autoridades católicas ou politicas, nem coronéis, nem leis republicanas, juízes, impostos arbitrários, policia, e onde a terra era de todos.
Em 4 anos, Canudos chegou a ter 25-30 mil habitantes, e 5.400 casas. Uma fortaleza labiríntica de barro vermelho, auto-suficiente, pacifica e organizada, um oásis no sertão norte da Bahia, refugio de aflitos e necessitados, novo e único lar de muitos ex-escravos. Uma originalidade ameaçadora, que logo recebeu o rótulo malicioso e calculado de 'foco de restauração da Monarquia', numa ação de intriga orquestrada pelo missionário católico italiano, João Evangelista de Monte Marciano. Era a senha para o recrudescimento que viria a seguir.
Em novembro de 1896, com 100 soldados. Em janeiro de 1897, com 600 soldados. Em fevereiro e março de 1897, com 1200 soldados: três expedições do exercito brasileiro foram vergonhosamente derrotadas pelos 'passivos' de Euclides da Cunha, municiados de armamento primitivo, mas mestres da guerra de guerrilha e desprovidos de medo.
A quarta expedição contra os desdentados era uma questão de honra, de vingança de classe, e de politicagem. Em 1897, sob o pretexto de deter miseráveis em processo de 'restauração da Monarquia' (!), foram reunidos na Bahia 20 batalhões de vários estados, num total de 4.500 homens, com 7.500 kg de munição, um canhão 32 Withworth de 1700 kg, puxado por 10 parelhas de bois, alem de 12 outros canhões menores.
A luta durou 4 meses e foi pau a pau, casa a casa, corpo a corpo, apesar da desigualdade de forças. Em 05/10/1897 caíram os últimos combatentes da resistência de Canudos: 1 velho, 2 adultos e uma criança. De novembro de 1896 a outubro de 1897, cinco mil soldados morreram nas campanhas.
Todos os prisioneiros foram degolados. Nas palavras de Euclides da Cunha: "aquilo não era ação severa da lei, mas vingança". E ainda: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a historia, resistiu até o esgotamento completo"
Antonio Conselheiro falecera 12 dias antes do assalto final, seu corpo foi exumado e sua cabeça decepada e entregue ao Instituto Medico Legal Nina Rodrigues, de Salvador, para constatação de sua psicopatologia. Segundo o Nina, tratava-se de "um cranio sem sinais de degenerescência, normal".
Parecia que assim se fechava então a historia de Canudos, mas acho que não. O tema inquieta, é mal contado. O que ocorreu ali foi nossa grande guerra civil, uma brutal covardia, um crime absurdo contra o povo nordestino e contra todos nós, uma tragedia injustificável nascida de conchavo, demagogia e mesquinharia de um lado, e de outro, a luta contra a miséria, o abandono e a politicagem.
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