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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Primum non nocere




Depois da postagem em que relato a historia da menina Elly, houve muita busca no blog sobre o tema 'fasciotomias no ofidismo'.

Confira o fio-da-meada: http://lachesisbrasil.blogspot.com.br/2012/05/um-certo-capitao-guilherme-e-o-complexo.html

Tema controverso, difícil de abordar pensando também no publico não especializado, mas é hora de descer do muro.

Na sequencia de imagens abaixo, as cinco incisões (fasciotomias) na perna e pé esquerdo de Elly, e seus primeiros passos no oitavo dia após o grave acidente











Por vezes, o inchaço causado pela picada da cobra pode levar a um evento chamado "Síndrome Compartimental" (SC), que é quando ocorre um aumento da pressão dentro de áreas anatômicas como loja tibial anterior e posterior da perna, extensora e flexora do antebraço, e tenar e hipotenar da mão.

Esse aumento de pressão comprime nervos e vasos no interior das áreas supra citadas. Pode haver obstrução de perfusão por compressão destas estruturas. Se o sangue não passa, o tecido distal morre.

Para restabelecer a perfusão, recorre-se à fasciotomias de dois tipos: pequena incisão na pele e grande incisão na aponeurose - tecido fibroso e inelástico que envolve os músculos - ou grande incisão na pele e aponeurose, aliviando a pressão e assim tratando a SC, possibilitando reperfusão.

A SC é evento que ocorre nas primeiras 24 horas do acidente. Falaremos da tecnologia adiante, mas é o exame físico hora a hora que detectará precocemente sinais de isquemia como 1) formigamentos 2) coloração de unhas (azuladas) 3) dor 4) sinais neurológicos sensitivos como anestesia e hipoestesia 5) sinais motores como paresia e paralisia, reconhecidos por exemplo pelo 'pé caído', sem dorso-flexão 

Na vigência destes sinais e sintomas, a equipe de Cirurgia Vascular entra em cena para 1)  avaliar o nível de pressão ao qual estruturas nobres estão sendo submetidas no interior dos compartimentos supra citados, com a introdução de um cateter que mede a pressão interna no compartimento anatômico, sendo qualquer valor acima dos 30 mm Hg, mal sinal, e 2) avaliar a qualidade do fluxo sanguíneo nas artérias e veias sob pressão, utilizando um aparelho chamado doppler duplex. Indica-se ou não cirurgia à partir daí.


Diagnosticada SC, opera-se imediatamente. Diagnostico tardio é quando o cirurgião encontra necrose no plano muscular. Essa necrose será removida, mas o dano vai prosseguir. Trauma e espoliação adicional e inútil, num paciente grave.


Cortesia Bob Norris, Stanford, fasciotomia em picada de cascavel, expondo e descomprimindo musculatura flexora e extensora do antebraço, tenar e hipotenar da mão. Note a ausência de necrose no aspecto vivido dos tecidos, indicando timing correto na indicação cirúrgica.

Em centros dedicados ao ofidismo, como o Hospital Vital Brazil do Instituto Butantã, a Síndrome Compartimental (SC) foi diagnosticada em 1,4% dos acidentes botrópicos, localmente mais agressivos que o crotálico ou laquético.

O evento (SC) é portanto raro, e no Brasil, praticamente se restringirá ao acidente botrópico. Pode haver edema grave em picada de cascavel brasileira, a ponto de indicação de heparina para manutenção de perfusão, mas desconheço diagnostico de SC em picada de cascavel ou de surucucu. Não conheço uma unica série brasileira onde houve indicação de fasciotomia num acidente laquético.

Não confundir a necessidade de diagnostico e abordagem cirúrgica precoces na SC, com aquele açodamento antigo de sair removendo áreas necróticas superficiais, ao seu primeiro sinal. 
Quanto do nosso sistema imune está em ação no foco necrótico ? Quanto do nosso próprio interferon, macrófagos ativados, radicais de oxigênio e fator de necrose tumoral não estão ali em cena enviados pelo nosso sistema imunológico - tratando e limpando - após a agressão do envenenamento ? Saber esperar é arte complexa: considerando que a soroterapia foi correta e suficiente, deixada quieta - longe dos cirurgiões - a progressão da lesão se estabiliza, e aí sim é hora de remover delicadamente o tecido desvitalizado.

A questão não é veto à fasciotomia, como querem alguns, mas deixar claro que o evento Síndrome Compartimental em ofidismo é raro, e que é difícil indicar uma fasciotomia realmente efetiva, mesmo nos melhores serviços, com equipes multi-disciplinares. A questão não é absolutamente de 'protocolos', mas de retorno à velha medicina de ficar 'na cabeceira do paciente', nestes tempos bicudos de SUS exaurido.

No British Medical Journal, de 29 de julho de 1978, paginas 352 e 353 Warrel afirma:

"... the dangers of pressure-relieving fasciotomies after snake bite include bleeding prolonged by venom-induced coagulopathy, secondary infection, delayed recovery, and damage to nerves and vessels. Sites such as the anterior tibial compartment and digital pulp space' may create special problems, but in the experience of a number of clinicians, including Professor Chapman and myself, fasciotomy has never proved necessary in patients given adequate medical treatment ..."

Estes médicos atuam nos cinco continentes, não cabendo portanto desqualificar uma afirmação tão contundente - fasciotomias não são necessárias se o é tratamento adequado - em função de estrutura de primeiro mundo para o atendimento às vitimas do ofidismo.

Repetindo, na rara oportunidade de se diagnosticar a SC - nas primeiras 24 hs do acidente - as fasciotomias evitam mutilação, e assim o procedimento é o único ato cirúrgico precoce sobrevivente na atual abordagem ao ofidismo. Mas não é isso o que normalmente ocorre. Por uma série de fatores inerentes à vastidão territorial, e aos problemas de infra estrutura do Terceiro Mundo, o tratamento do ofidismo é frequentemente tardio, e a indicação cirurgia equivocada. E assim, vê-se erroneamente o procedimento fasciotomia como ineficaz e iatrogênico, mas a falha esta na indicação, novamente no 'timing'.

Um exemplo: as fotos abaixo ilustram um acidente por Bothrops jararacuçu (muito veneno, sempre grave), que chegou ao João XXIII com 30 horas de evolução, tendo recebido soroterapia polivalente 6 horas após a picada. Havia síndrome compartimental no terço médio da coxa esquerda, e sinais de sepse (fase quente). Veja a coloração do joelho, péssimo sinal. A Toxinologia solicitou amputação desde a coxa ou desarticulação no quadril, de imediato. Mas 'o protocolo' pediu fasciotomia, observe o aspecto desvitalizado dos tecidos expostos pela fasciotomia. 12 horas depois da fasciotomia o paciente retornava ao centro cirúrgico para amputação desde a coxa. 3 dias depois a perna foi desarticulada do quadril.







O paciente morreu no pós operatório. "É sempre bom observar (e criticar), da margem, o esforço dos marinheiros' (Lucrecius, 90-55 D.C)

A equipe não correu de trabalho - negligencia por preguiça - isso sim imperdoável. Ao se remover a perna inteira de um jovem, impedindo até mesmo espaço para prótese, há uma condenação a uma qualidade de vida difícil, e essas coisas passam na cabeça do ser humano que segura o bisturi.

Mas sim, as chances seriam maiores com a desarticulação imediata proposta pela Toxinologia. Observe que pela coloração do coto acima, toda a coxa era inviável.


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