Os "Sete Picos" acabaram por me mostrar de que matéria são feitos meus meninos. Como pai, as montanhas me trouxeram mais sossego interior. Ví Gabriel chamar para sí a responsabilidade nos momentos mais criticos, como um paredão de 80 graus de inclinação (onde eu tremi), transposto pela primeiríssima vez segundo o Guia Neneco, no flanco do Tres Irmãos. Ví Luca e seus 30 kg calar a bôca de todos - Guias experientes, hospedes que conheciam os Picos, familiares - e superar o Pico do Sol (26 km ida e volta) no Sabado, e os Picos Conceição e Três Irmãos, numa jornada de trinta e cinco quilometros, no dia seguinte.
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Luquinha, concentrado |
Minha função clara, depois de tudo o que ví, vivi, presenciei nos Picos, é somente ajudá-los a encontrar aquilo que amam fazer na vida. Capacidade de luta eles já tem.
Chegamos ao Caraça na sexta feira à noite, 28/10/2011. Vinha acompanhando as fortes chuvas sobre a região durante toda a semana, não sendo possivel prever de fato a viabilidade de escalar, ainda mais em se tratando do Pico do Sol, o mais alto da Cadeia do Espinhaço. É um pico em cuja rota rumo ao cume surgem cursos cursos d'agua, traiçoeiros (escorregam) com pouco volume, e intransponiveis sob chuva forte. Mas abriu-se uma janela de tempo no Sabado dia 29/10, e seguimos adiante guiados pelo querido NENECO.
Até ver o Pico do Sol é dificil, é este no fundão do vale. À esquerda a Cara do Gigante, à direita o Inficcionado, lá longe, no meio da imagem, o Sol, visto do Campo de Fora.
O Pico do Sol tem em seu caminho tanta variedade de deslumbres, que muito frequentemente nos esquecemos do coração saindo pela bôca. Interessante a exaustão fisica e suas imagens mentais. Luca lembrou-se "dos monges pegando fogo", aqueles do Viet Nan, tentando (com sucesso) vencer-se a sí proprio até o cume. Gabriel lembrou-se dos 'cordeiros virando leões' do Robin Hood, e seguiu superando tudo, moral da tropa nas maiores dificuldades.
Abaixo Luquinha em dois tempos fazendo seu caminho, inclusive por sobre a fenda que já interrompeu o 'passeio' de muita gente grande, segundo Neneco.....
... alegria para nós é onça das grandes por perto, e o olho atento do Gabriel não deixou passar esta pegada, aumente o som...
... na abordagem final ao cume, honra e emoção, precedida de um lanchinho na Concha, abrigo natural dos montanhistas nas horas dificeis de frio e exaustão, raios e granizo...
... no cume do Sol, Gabriel recupera e reimplanta a antiga cruz, enquanto Luca se distrai no mijão....
... ainda no cume do Sol, aumente o som e escute o desabafo o Luquinha...
Descer o Sol doeu e muito, mas no caminho, coisas que fazem brilhar os olhos ajudavam na superação: a flor da Canela de Ema, a orquidea, a flôr da bromelia, a natureza se recuperando do fôgo recente.... .
Chegamos ao Santuario ainda com luz do dia. Banho demorado, jantar reforçado, e às 21 hs em ponto os meninos já estavam no Buteco do Caraça, "Doritos e Fanta", colhendo o respeito que conquistaram. A noticia se espalhou rapido... "...eles conseguiram, o Sol...". Conversavam de igual para igual com adultos tarimbados nas rochas, inclusive com a dupla que se prepara para o Everest, amaciando as botas nos "Sete Picos".
Às 22 hs dentes escovados, pijama quentinho e cama. Conversamos um pouco sonbre as possibilidades do dia seguinte. Ficou combinado que seria uma decisão de todos. A depender do clima, e do estado fisico e psicologico da tropa, tentariamos o nosso sexto Pico: o "Conceição".
Antes de apagar Gabriel me vem com essa: "Papai, como é mesmo o nome do oposto de prejuízo ?"... "Lucro", respondo, ao que ele emenda: "Então nossa situação é assim: se não conseguirmos fazer outo Pico já fizemos o Sol, e se não der nem para sair de casa (chuva) estamos no Caraça, então qualquer coisa que acontecer já estamos no lucro...". Beijei os dois, apaguei as luzes, ví o momento exato em que cada um adormeceu profundamente, eu mesmo não acreditando no dia que tivéramos.
Domingo 7:00 da manhã, a esperada "Hora da Chapa"...
Tempo firme, barriga cheia, Luca surpreende a mim e Gabriel: "Quero fazer os dois picos hoje Papai"... "Vamos conversar com Neneco e tentar o 'Conceição', e se voces realmente aguentarem e o tempo deixar, dele seguimos para o 'Três Irmãos'...."
O "Conceição" e os "Três Irmãos" são 'picos primitivos', nas palavras do mais antigo Guia de Caraça, João Julio. Por primitivos entenda-se o tôsco, o rude, o pouco visitado. Caminho pisados pela ultima vez a 30 anos, trilhas onde 'nem onça anda', segundo Neneco. Este picos são os senhores dos 'Campos de Fora'.
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À esquerda o 'Três Irmãos', à direita o 'Conceição', vistos do portal do Pico do Sol, e entre eles a pouco visitada "Passagem" que inclue o Pico Santo Agostinho. |
A caminho do "Conceição", constato aliviado que o Campo de Fora não sofrera muito com o incendio. Muito cocô de anta, agua e mato alto...
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Já quando ganhavamos altura, o cenario das cinzas mostrava como foram duros aqueles dias de incendio recente, quando surge uma Fênix Cabocla...
E assim, de repente, em meio a tanta coisa das que agrada minha pequena tropa, cocô de anta inclusive, sem percebermos estavamos do cume do "Conceição", o sexto pico. Eram 15:14 da tarde. Abaixo, os Leões da Montanha no cume do Conceição, com os três picos do "Três Irmãos" ao fundo, nosso proximo alvo, após 5 minutos de descanso, regado a agua e castanha do Pará.
Pelo radio João Julio nos felicitava dizendo que 'tirava o chapéu' para os meninos, e recomendava retorno imediato ao vale: chuva de granizo ao Sul.
Avaliando o sentido do vento, Neneco e eu consideramos nossa posição segura, e na sequencia, como de praxe para resgate eventual, transmitimos a um preocupado João Julio que pretendiamos tentar tambem o "Três Irmãos", usando uma rota mais rapida chamada "Passagem" ou "Travessia" - que iclluie o oitavo pico, o Pico Santo Agostinho - que liga o Conceição ao Três Irmãos sem descer ao vale, e partimos. Neneco não é de negar fogo, não é Guia só de trilha aberta, rompe mato no peito, e mesmo sabendo que seria durissimo, permitiu que prosseguissemos, contaminado pelo animo dos meninos.
Teriamos luz até uma 19:30 hs (horario de verão). Não abordar o pico pelo caminho normal, que é via vale do Campo de Fora seria nossa unica chance de cume antes do breu total. Flanqueamos o complicado "Três Irmãos" (sem vegetação de suporte pelo incencio, rocha nua) à procura de uma fenda, inaugurando um caminho perigoso, e que nunca mais será usado pelo visitante comum (como nós), segundo o experiente Neneco: "...esse negocio de coragem não é muito bom não...".
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A rota normal para quem segue para os "Três Irmãos" é um prosseguimento para a esquerda da linha amarela à partir do ponto 1: pega-se um plano inclinado vindo do Campo de Fora, e sobe-se com relativa tranquilidade. À partir do ponto 1, nossa rota aproximada. Somente para se chegar ao ponto 1 a caminhada já beira os 14 km. Do ponto 2 ao 3, quando na linha verrmelha, estamos atrás do relevo, evitando a vegetação pesada do fundo do vale. De 3 a 4 o zig zague cansativo ao cume do Conceição. Em 5 já estamos perto da base, do inicio da "Passagem" ou "Travessia" entre o Conceição e o Três Irmãos, raramente visitada e que inclue um oitavo pico, o Santo Agostinho, marcado pelo numero 6. Em 7 vimos que a rota ascendente apresentava riscos demais e flanqueamos rumo a 8, um trecho dificil, e arriscado quando se quebra de 8 para 9, mas como dito anteriormente, foi a rota que nos permitiu escalar com luz do dia. Normalmente tambem se segue para alem do ponto 10 até a base da montanha no vale. Nós quebramos de 10 para 11, uma pirambeira que em muitos trechos escorregamos de bunda a mil por hora, na mistura de lama, cinza e pedra solta. No ponto de interseção da rota de ida e de volta, começa um mato fechado, 'onde nem onça anda' (Neneco), que rompemos no peito, sem facões, atalhando e cortando caminho, concluindo com luz e segurança essa etapa. |
Esta rota nova nos levou ao mais alto dos três cumes, com grande sacrificio. Vejam no video abaixo (10 segundos), do Cume dos Três Irmãos, as maõzinhas sofridas, o rosto imundo, e a sensação de realização nos sorrisos, neutralizando todo o cansaço....
Era noite quando chegamos à bifurcação que marca o inicio da estrada larga, a 8 km do Santuario. Combinamos que Gabriel e Neneco partiriam voando na frente, para garantir-nos um prato de comida. Segui atrás com Luquinha, caminhando forte, mas nem tanto, de olho na trilha, para não pisarmos em cobras. Meu filho e eu andamos juntos e sem espanto algum, na noite sem lua na terra dos lôbos, suçuaranas, cascavéis e cachorros-vinagre, passando pelos Pinheiros, Banho do Belchior, guiados pela silhuenta do Pico do Caparuça, que marcava nosso destino final.
Chegamos ao refeitorio às 20:30 hs, Haviamos completado inteiros nossa travessia e agora estavamos numa mesa farta, que incluia a presença honrosa de Neneco. Comemos em silencio, perdidos nas lembranças das últimas intensíssimas 48 hs de nossas vidas.
Foi assim que além de Pai e Filhos nos transformamos em algo maior, nos campos e sete montanhas da Mãe dos Homens...
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