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sábado, 15 de janeiro de 2011

Surucucu e os Villas Boas, moral e mistérios




Nas pesquisas sobre a questão da neurotoxidade em Lachesis, encontrei ontem mais um trabalho (acadêmico) citando a "agressividade" do gênero, algo que não confirmo após 10 anos de lida, avaliando o bicho como tranquilo.

Contudo, tem gente que não posso questionar, Orlando, Leonardo e Claudio Villas Boas um exemplo. Só se consegue o que eles conseguiram na epopéia da Expedição Roncador-Xingú sendo justos, tendo moral e credibilidade. Assim, se eles dizem em "Marcha para Oeste" que a surucucu é a "unica cobra venenosa brasileira que avança (ataca)", devo considerar que Lachesis tem o potencial de partir para cima de um ser humano.


Da esquerda para a direita, em campo, Orlando, Leonardo e Claudio Villas Boas

Imagine-se no mato liderando, dando ordens, a um grupo de homens armados, recrutados sem "Folha de Antecedentes" entre garimpeiros, assassinos foragidos, sertanejos rudes. Confira o clima:

http://www.youtube.com/watch?v=SK5vr7hkzac&feature=related

Você que me lê teria moral para controlar um grupo destes ? "Os Irmãos" extraíram o melhor de cada um destes brasileiros calejados - força e resistência física, sabedoria inata e lealdade - marchando a pé pelo mato no rumo Oeste brasileiro, terras que nas décadas de 30 e 40 eram tão desconhecidas e inóspitas quanto o coração da Africa..

Chegavam à beira de um ribeirão mais grosso, e então paravam, armavam acampamento, derrubavam arvores, limpavam o tronco a machado, serravam tabuas no serrote, construíam o batelão (barco), e seguiam.

Comida ? Estoques limitadíssimos, caça e pesca ... "aos Domingos".

Achou pesado ? Então sinta que na sequencia dos trabalhos, este mesmo grupo de homens chegava a um terreno mais ou menos plano, naquela área de transição entre amazônia e cerrado, com a missão de construir um campo de pouso de aviões.

Cortar as arvores altas, tirá-las do caminho, cortar e limpar o mato menos grosso, 'destocar' tudo, que é remover as raízes profundas, limpar de novo, desenterrar e remover todos os formigueiros (terra fofa, armadilha para pouso e decolagem), "pilar" tudo, que é a compactação e terraplanagem do solo. Isso na decada de 40, na mão. Extensão destas pistas: de 400 a 1000 metros de comprimento, por cerca de 60 de largura. Foram várias, na mão.

A vanguarda da expedição "Roncador-Xingú" era mais ou menos abastecida quando os campos de pouso eram inaugurados, e os aviões traziam as encomendas feitas por rádio, quando o radio funcionava.

Entendo aqui porque pilotos brasileiros fizeram bonito na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Gente do Correio Aéreo Nacional, acostumados a enfrentar pistas como essas, navegando no olho, pousando e decolando com trens de pouso raspando nas copas.

Passaram fome muitas vezes vitimados pela burocracia. Comeram onça, tomaram "chá-de-quaqué-fôia": na falta de tudo, arranco um mato qualquer, fervo e bebo.

Mas ainda assim, liderados por principalmente por Claudio e Orlando - Leonardo abandonou precocemente a expedição - estes homens trabalharam duro de uma forma que não nos é realmente dado a conhecer - só estando lá - e perfilaram-se para o hasteamento da Bandeira todos os dias. Alguns enlouqueceram, uns poucos transgrediram na disciplina e foram sumariamente 'despachados de volta' no primeiro avião.

Mas não se sabe de índio morto por gente da expedição, ou de indiazinha estuprada. Facas foram puxadas. Ânimos se exaltaram ao limite, mas havia um núcleo de comando com moral para que se evitasse o pior.

Esse controle psicológico que os irmão Villas Boas construíram sobre o grupo foi vital, porque o mais difícil era o porvir: fazer contatos com tribos arredias, valentes, guerreiras. Memórias recentes 'do sumiço' do famoso americano, Coronel Fawcett, pelos Kalapalo.

A questão ali não era de poder bélico, de valentia do branco, mas de estratégia na aproximação e controle total sobre os homens armados.

A vida estava no limite o tempo todo quando entraram em terras de tribos ameaçadas:

http://www.youtube.com/watch?v=MWdaXLycm-s&feature=related

Mas perseveraram e construíram o Parque do Xingú, com criticas - sem propostas alternativas - por terem juntado etnias. Com olhos de hoje, sabe-se que não teria sobrado um só índio se não fosse por eles, exemplos mundo afora às duzias.

Implantado o parque (do tamanho da Bélgica), não estava pronta a empreitada: negociar a paz entre inimigos históricos agora vivendo lado a lado, internamente, e proteção de entorno (agropecuária, garimpo, grilagem), eram só dois dos desafios imediatos.

O garimpeiro, o assassino foragido, o sertanejo rude, eram todos afinal seres humanos iguais a nós, com mais ou menos os mesmos valores, e certamente menos oportunidades. Mas o índio não. Sua psicologia é própria. Para falar com guerreiros sobre guerra e paz, vida e morte, só sendo tão guerreiro quanto os interlocutores  Grandes chefes como Izararí, ouviam os irmãos Villas Boas e assim, a mais delicada das questões de primeiro momento, a convivência entre as etnias, foi aos poucos se dissolvendo, "na moral". Mas não foi fácil:

http://www.youtube.com/user/nvillas

Então, se Orlando e Claudio falam que surucucu avança. Ela avança. Vou ficar mais esperto. Já vivi de tudo em resgates de Lachesis, menos uma sequencia dirigida de 3 botes ou mais, esticando todo o corpo à cada bote, ativamente rumando em minha direção, como vários antigos moradores do Sul Baiano relataram-me ter vivenciado, e que os Villas Boas ensinam-me que pode vir a ocorrer*.

Trata-se do tal 'SÚ Ú Ú' dos Tupi Guaranis, ou "bote bote bote", com o verbete "surucucu" significando 'aquele que dá botes sucessivos' (Silveira Bueno, 'Dicionario Tupi-Guarani / Português').

* nota minha: quando escrevi essa postagem ainda não tinha vivido essa experiencia, dos botes em sequencia em minha direção, que acabou sim ocorrendo, confira relato no link abaixo

http://lachesisbrasil.blogspot.com.br/2013/08/mea-culpa.html


A vida dos Villas-Boas é terreno onde sempre cabe o mistério. Orlando estava no mato com um dos irmãos e um índio, chovia muito forte, frio e vendaval. Raios e arvores caindo 'como palitos'. "Vou morrer" pensou, foi quando surgiu um grande oco numa arvore caída. Entraram os três para dentro. Tremendo de frio, risco de hipotermia, dormiram. Ainda escuro ao acordarem, notaram dentro do oco, em sua entrada e deitado com eles, um grande cervo. O bicho enorme havia aquecido o grupo durante o momento critico. Então o animal se levantou, e calmamente seguiu seu rumo. O "Espirito da Floresta" segundo o Xavante. Seja lá o que tenha sido isso, bom sinal, talvez a 'Lei do Retorno' atuando, com os Villas Boas sendo abençoados por seus próprios atos.

Abaixo uma imagem daqueles tempos em que se deu a Expedição Roncador-Xingú, em que as surucucus ainda tinham tempo de vida e habitat para chegar e ultrapassar os 3 metros.
































Mas assim como veio Fordlandia, Balbina e seu 'Laranjal do Jarí', a Bamin no pé da Serra Grande, onde trabalho com Lachesis, a Anglo Gold cercando o Caraça e etc, virão mais levas e hordas de devastação, e nestes tempos difíceis, em que a surucucu da Mata Atlântica já enfrenta noventa e três por cento de destruição de habitat, é sempre bom lembrar destas coisas antigas, como a temperança e a honra que regeram a vida dos Villas Boas, e que podem 'abençoar a vida' dos detentores da caneta, como intui meu filósofo Luquinha, retratado abaixo com o irmão Gabriel e uma Bothrops neuwiied, em aula pratica de campo, minutos antes de sua soltura. Outros meninos, outros tempos, outro contexto, mas o mesmo rumo à terra devastada.































Uma ultima pincelada no legado dos Irmãos Villas Boas: uma escola de Indigenistas que divergia daquela de Rondon, que buscava contato com os índios para trazê-los para o 'beneficio' do mundo branco. Sidney Possuelo, na mesma linha dos Villas-Boas, acredita que só há uma salvação para as tribos isoladas, que é permanecerem isoladas. Na experiencia de Possuelo, após o contato inicial, em questão de um ano estava quebrada a altivez, a independência, a auto suficiência e a saúde do índio, e não raro, 30- 50% da população do grupo perecia.

Sidney liderou sete primeiros contatos - inevitáveis - com tribos isoladas.

























Sidney com os Korubos, foto: Erling Söderström



Para que a tribo isolada permaneça 'isolada', é necessário que sua terra ampla seja demarcada e protegida. Criar fronteiras para proteger, limitar acesso externo e isolar, foi o conceito do Xingú dos Villas Boas. Nessa trilha, a de cavar espaço territorial para os índios, Sidney foi demitido da FUNAI por contestar publicamente o presidente Mércio Pereira Gomes, em sua afirmação de que "no Brasil tem terra de mais para índio de menos"

Em épocas de revisão do Código Florestal brasileiro, o conhecimento de que há pelos menos 40 tribos (2001) isoladas na região norte, torna-se essencial que a visão de Sidney seja levada em conta, por representar justiça para com os verdadeiros donos da terra.

Os irmãos Villas Boas, Apoena Meireles, Francisco Meireles, Claudio Romero, Francisco Bezerra, Sidney Possuelo e alguns pouquíssimos outros, formam parte das raras boas novas da nação brasileira, a nata dos 'Sertanistas': gente duríssima, forte, corajosa, abnegada, devotada de corpo e alma à questão do índio, recebendo salários medíocres, correndo risco de vida o tempo todo, sofrendo podas politicas o tempo todo, e seguindo adiante, insubstituíveis em sua experiencia prática.

O bem maior que estes homens nos deixam foi sua inequívoca tomada de posição ética, em épocas em que as Nações Indígenas eram tidas como meros transtornos à marcha desenvolvimentista. Hoje é fácil estar 'ao lado do índio'. Ou como diria Ferreira Gullar: "Fui esquerdista quando dava cadeia, hoje dá emprego"...


Fica aqui também uma justa e necessária homenagem, junto a triste constatação: aquele que talvez tenha sido o maior etnólogo 'brasileiro' de todos os tempos é um total desconhecido, e nasceu na Alemanha, em 1883. Seu nome Curt Unkel.







Desembarcou no Brasil em 1906, MARCHOU PARA OESTE, encontrou os guaranis-apinacauás, foi adotado pela tribo e mudou de nome, virou Curt Nimuendajú, um sobrenome que em tupi-guarani pode ser traduzido por 'aquele que fez seu próprio lar'.

Durante 40 anos viveu entre pelo menos outras nove tribos, deixou 50 livros, morreu em 1945 às margens do Amazonas, sem jamais ter retornado ao convívio com os brancos. Foi enterrado como o índio que de fato havia se tornado.


Abaixo e concluindo, Orlando em 1940 no rumo oeste, em imagem do arquivo de seu filho Noel, fundador do Instituto Orlando Villas Boas, SP.







"Marcha para Oeste: A Epopéia da Expedição Roncador-Xingu" (Editora Globo), é imperdível, e está também nos cinemas:

https://www.youtube.com/watch?v=7V5nIIkCYpQ

Entenda a evolução histórica da 'Marcha para Oeste':

http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/03/marchando-para-oeste.html







4 comentários:

  1. Muito bom, Rodrigo, seu texto flui. Agora, a foto inicial do seu blog é impressionante.

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  2. Emocionantes histórias de coragem e Paixao .

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  3. Obrigado pelo excelente texto! Abraços

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  4. A gente se embrenha pelos seus textos ...vai lendo um link, outro e não quer mais parar.

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