Estima-se que restam 7,4% da Mata Atlântica original na Bahia. O desmatamento 'formiguinha' - em pequena escala, multifocal, contínuo e de difícil detecção - avança à um ritmo de 1% (hum por cento) ao ano sobre de áreas protegidas ou não, segundo as fotografias de satélite da Ceplac.
Confira: http://lachesisbrasil.blogspot.com.br/2012/07/vanzolini-revisitado.html
Não fosse talvez pela avidez mundial pelo chocolate, a situação no sul da Bahia não seria diferente daquela do Espirito Santo, onde quase tudo já é pasto. Ainda assim, mesmo com a mata sendo preservada para sombrear o cacau, aconteceram ondas recentes de ataques diretos ao bioma e seus habitantes.
Nas décadas de 70 e 80 houve pulverização das roças de cacau com BHC, em tentativa de controle de pragas da lavoura cacaueira, com mortandade concomitante de pequenos roedores do genero Orizomys sp., carro chefe da cadeia alimentar de Lachesis.
Lembro-me do trabalho medico em 2007, no vilarejo de Brejo Mole, Maraú, Bahia, de dificil acesso e matas espetaculares, e conversando com seu morador mais idoso sobre Lachesis, este me revela que 'não se vê uma aqui a mais de 10 anos', e explica que a pulverização de BHC 'calou a mata': nem rato, nem passarinho, nem lagartos, nem surucucu, nada. Uma lenta retomada.
Na década de 90, a crise da "vassoura-de-bruxa" (fungo devastador para o cacau) levou fazendeiros desesperados a derrubar a mata, e por outro lado, nesta mesma década, também consolidou-se a exploração do "turismo de aventura" ou "eco-turismo e esportes radicais", com crescente afluxo humano na floresta residual, sempre a um preço para o bioma.
Ultimamente vivemos o chamado "segundo achamento português" (ou europeu) com instalação de mega projetos hoteleiros em regiões costeiras, inclusive dentro da "áreas de preservação permanente" de Mata Atlântica. E pior que isso é a era das 'comodities', Porto Sul e afins, confira:
http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/05/surucucu-o-econegocio-e-o-pacto-do.html
Neste cenário, o que se configura para os proximos 50 anos é presença de fauna confinada em reservas particulares do patrimônio natural (RPPNs), parques e reservas, sem intercambio genético entre as diversas populações. É certo que a Mata Atlântica um dia foi tida por alguns como algo inesgotável, como a Amazônia ainda é vista. Quando se anuncia hoje o "fim do cerrado" em 30 anos, e a 'savanização' do sul amazônico, que estes registros se prestem à reflexão.
É neste residual de ilhas verdes de Mata Atlântica, do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Norte, que sobrevive a maior cobra venenosa das Américas e segunda maior do planeta. Predador de grande porte em area restrita,a "pico-de-jaca" enfrenta declínio populacional incontestável, por destruição do habitat e matança indiscriminada.
A sistematica retirou Lachesis muta rhombeata da lista oficial de animais "em extinção" do Ibama. A ainda controversa sinonimia com "muta" a salvou, ao igualá-la ao animal amazonico, bem mais protegido pela extensão e caracteristicas da Região Norte. A International Union for the Conservation of Nature considera hoje o animal da Mata Atlantica como "vulnerável".
Para aprofundamento em taxonomia de Lachesis, confira: http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/02/questao-da-subespecie-cascata-das-racas.html
O cenário descrito anteriormente projeta futuro sombrio para a especie, não só na Bahia, como em todas as "matas atlânticas" residuais e algumas matas de altitude, na junção Norte-Nordeste, como Baturité, no Ceará.
Nem de longe o Genero tem a adaptabilidade e rusticidade de Bothrops, a começar pela oviparidade em Lachesis, passando pela sua incapacidade de deglutir grandes presas, aquelas de peso maior ou igual a 20% do peso corporal da cobra. Nenhuma surucucú comeria um preá destes de 400 gramas, como facilmente faria uma Bothrops jararacussú adulta.
Em areas restritas onde Lachesis e Bothrops são simpatricos, como o extremo norte amazonico e America Central, observa-se Bothrops asper atingindo e superando as surucucus em dimensão e numero de individuos. Vide http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/07/supremacia-lachesis-em-cheque.html
Só para se ter uma ideia da questão, durante todo o periodo da "guarda de ovos" a femea de Lachesis vive exclusivamente de agua (70 dias em media), e durante a gestação come pouco ou quase nada (100 dias), enquanto asper (que deglute preás de 400 gramas) despeja de 10 a 20 filhotes vivos e prontos para a luta pela sobrevivencia. Voltaremos adiante à essas observações reprodutivas.
Essa incapacidade de sobreviver fora de biomas com as caracteristicas de umidade e temperatura da mata primaria transforma a luta pela preservação de nossas florestas em luta pela própria especie. O animal não é encontrado na restinga, e mesmo no nivel do mar só a observamos havendo mata em região montanhosa adjacente.
Nas maiores altitudes temos menores temperaturas. Na mata preservada temos maior umidade. Na mata de altitude, conjugando alta umidade e baixas temperaturas, temos o chamado "território de Lachesis".
Neste território as temperaturas dificilmente ultrapassam os 27 graus e a umidade relativa do ar minima fica em torno dos 75%. A entrada de frentes frias em meses como agosto e setembro, pode, na Bahia, lançar o "territorio de Lachesis" aos extremos minimos da temperatura, cerca de 14 graus Celcius.
Toda a morfologia de Lachesis nos remete à adaptações à esse ambiente:
1) o longo tubo digestivo de um animal que pode alcançar 3,40 mts é uma especialização à digestão lenta à baixas temperaturas.Submeta o animal à altas temperaturas (28-30 graus) durante o processo digestivo, acelerando o catabolismo,e será observado alto indice de regurgitação...
2) a rugosidade da jaca,"pico-de-jaca",observada nas escamas dos adultos,a dita hiper-queratinização,é uma proteção contra fungos e outros perigos do ambiente umido,servindo tambem de couraça em sua vida comensal nas galerias das pacas e buracos de tatús. A rugosidade tem tambem função escavatoria, com alargamento ativo das tocas que evita o pisoteio dos ovos e dos proprios animais,por parte dos donos da casa (pacas e tatús)...
3) a predileção alimentar e a tatica de subjugação tambem dizem muito sobre a adaptação ao bioma. No solo umido e frequentemente alagado da mata,uma presa diminuta pode simplesmente desaparecer até que o veneno a imobilize. Assim, economizando tambem a energia que seria gasta no rastreamento, na grande maioria dos botes alimentares o roedor é retido, com as presas normalmente injetando veneno diretamente no coração e pulmões, visto que a area visada para o bote é quase sempre a cintura escapular dos pequenos (200 gramas) Orizomys sp. Estes ratos tambem se alimentam dos frutos do cacau, o que gera frequentes encontros entre Lachesis e trabalhadores rurais, encontros estes com e explosiva combinação entre falta de material de segurança no trabalho e o perfeito mimetismo contra o folhiço semi-decomposto do solo. No acidente mais comum, o trabalhador pisa da cobra...
4) A oviparidade é outra faceta da biologia do animal que exige bioma de mata preservada,cuja alta umidade evita a desidratação dos ovos porosos. Em Setembro e Outubro,confirmando sabedoria popular, podem ser observados individuos aos pares. As frentes frias que atingem o litoral nordestino neste periodo, provocam brusca queda da temperatura e tambem súbito aumento da umidade relativa do ar. Parece ser esse o gatilho que faz as femeas sairem espalhando seus ferormonios. Cópula neste periodo (100 dias de gestação) significa ovipostura em janeiro e fevereiro, e encubação (70 dias) durante os meses mais quentes e menos chuvosos... A chance de alagamento das profundas galerias de paca e tatú, sitio natural da encubação dos ovos de Lachesis, é menor nessa época. E só há verdadeiras galerias em terrenos de declive, montanhas. Insetos não voam para a escuridão dos túneis, a profundidade das tocas limita a emissão de odores e outros atrativos aos predadors de ovos, como os teiús. Livres da ameaça das larvas de moscas, do alagamento, do pisoteio (pacas e tatús) e sob guarda permanente da femea (ou macho e femea a confirmar), o "cacho" de 6 a 19 ovos (12 x 4,5 cm cada) tem boa chance de vingar na mata preservada.
Confira: http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/06/alguns-habitos-e-taticas-adaptativas-de.html e tambem http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/07/sobre-os-ovos.html
Mesmo sendo considerado animal noturno, as surucucus são observadas buscando banhos de sol antes das 8 da manhã e após 16:30 hs, quando a incidencia é branda. São tambem observadas buscando banhar-se na chuva. Dia frio e chuvoso é dia de Lachesis. Noite fria, chuvosa e sem Lua (boa para caça) é noite de Lachesis.
Compreendida minimamente a relação de Lachesis com seu bioma, é importante lembrar que a coexistencia pacifica com os humanos neste mesmo bioma é um mito. Não há lei ou qualquer outro fator que vá proteger este animal da politica atávica do abate. Trata-se de algo com raízes bíblicas, além de verdades de dor e assombro.
Até os dias de hoje fala-se do ataque a fogueiras ou ao candieiro nas mãos do agricultor. Ou da velocidade do bote que alcança um "cavalo galopando duas vezes". Ou da capacidade de "ficar de pé no proprio rabo" e injetar veneno com a espicula da ponta da cauda. Tudo isso no fundo reforça a politica do abate, e o trabalho de desmistificação é também trabalho de preservação. Sendo bom lembrar contudo, que quando o povo fala de uma vaca malhada, pelo menos uma mancha essa vaca tem.
veja tambem: http://lachesisbrasil.blogspot.com/2011/02/breve-historico-comentado-do-genero_13.html |
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